Miguel de Carvalho
« … Je n’ai jamais rien connu de plus
magnétisant : il vas sans dire que le plus souvent nous quittions nos
fauteuils sans même savoir le titre du film … »
(fragmento de Comme dans un bois de André Breton in L’âge du Cinéma, número especial de 1951).
No passado dia 25 de julho, Sérgio deixou fisicamente esta enorme “poltrona” que é a realidade planetária onde, ao longo de quase nove décadas por todos os continentes que navegou, respirou ofegantemente a poesia do ambiente que o envolveu, em cada momento, inspirando a oxigenação do movimento e da visão fascinante da beleza feminina, do acaso, do encontro, da paisagem, das relações e da surpresa. E a humidade resultante dessa intensa respiração, Sérgio condensou-a através da linguagem do desejo numa extensa e inigualável obra escrita e visual (segundo Sérgio, é tudo a mesma coisa), de que as dezenas de livros publicados e milhares de imagens produzidas são disso testemunho vivo. Magnetizante era sobretudo a sua presença cuja dedicação à relação que no momento se estabelecia, tinha um único polo orientador: o da beleza convulsiva que, ascendendo ao conceito bretoniano, o fora nele também … sempre. Regozijo-me do nosso convívio de duas décadas. Deparei que foram poucos os que deixaram de o acompanhar nas suas lutas, na maioria por "mudança de direcção" (por abandono do movimento surrealista, por exemplo) e foram bem mais os que o deixaram no caminho, porque partiram desta aventura de vida. Em todas as suas relações, sem excepção, perduraram no Sérgio os momentos de maior carinho. Mas poucas foram as que perduraram no tempo, porque poucas foram as que ao lado dele estabeleceram forças de escoamento da obscuridade, do que somos, ou melhor, do que nos convence o que somos. Nas caminhadas partilhadas com Sérgio, não havia avenidas nem ruas, mas imensos passeios em que corpos sem remorsos caminhavam lado-a-lado, pé-ante-pé, comunicando, interagindo, cheios de beleza. Nestes “diálogos”, mesmo nos mais surdos ou na mais inútil comunicação, rápido se percebia o lado poético que delas, ao lado dele, do Sérgio, se poderia aportar à realidade. E rapidamente, também, se percebia que estes passeios eram caminhos carregados de poder por diversos procedimentos de sedução, de repulsa e de fascínio, como se labirintos se tratassem onde se pudesse recarregar de liberdade as nossas vidas sensíveis e corrompidas pelo óbvio, pelo imediato e pelo dejá-vu. Remetendo para aqui a expressão “experiência da presença” de que nos fala Octávio Paz da sua vivência na Índia, pretendo partilhar com o leitor sobretudo a ideia da presença duma experiência de um corpo em transgressão, não do ponto de vista social, mas aquela que encerra as palavras do Sérgio “… o olhar, no amor, é definitivo e o corpo significa …”. E aqui foi a imagem, mesmo no limite da vivência visual, que o encantou e o moveu para um resultado final duma experiência que perdura inesquecivelmente no significado daquilo que definiu como Corpo Significa, polarizado no sentimento mais profundo que é o Amore. Entendo ser este o legado do caminheiro Sérgio Lima, aquele que libertou do plano das realidades de uma única real tradição viva e retornou agora para um outro plano selvagem, um legado tal como a estrada de Penrose – mais larga que comprida.
Figueira da Foz, 1 de Agosto, 2024